Na véspera de te ires embora começa a formar-se sobre a
minha cabeça uma leve nuvem negra. À medida que os dias avançam a nuvem começa
a tomar contornos capazes de preocupar a Protecção Civil e de a levar a
decretar estado vermelho em todos os distritos de Portugal continental e ilhas.
Escurece a nuvem. Torna-se preta demónio. Expele raios e coriscos como
torrentes de lava. Desce sobre a minha cabeça, dela só sobressaindo as minhas
orelhas e a ponta do meu nariz. Transformo-me em nuvem e transito pelos dias
numa espécie de transe auto-infligido. Se fizer de conta que o tempo não existe
não o sinto passar e acumular em folhas brancas de silêncio.
Quando tu não estás só existe silêncio. Só existo pela
metade. Finjo a docilidade e a candura que dizem serem minha característica para
que a ordem do meu mundo não se quebre mas é complicado resistir à vontade hercúlea
de gritar com toda a gente. Quando tu não estás só me apetece gritar com as
pessoas e pareço ficar cega às qualidades, só lhes vejo defeitos. E não me
apetece sorrir. E tudo em mim é um rastilho de mau humor que qualquer faísca,
por mínima que seja, o pode fazer acender rumo a um resultado imprevisível. E não
gosto de mim assim, tão no limite da tolerância.
Quando tu não estás o cansaço é mais incisivo. Custa mais a
dormir. A cama é, ao mesmo tempo, demasiado grande e demasiado pequena. Todas
as almofadas não chegam e nenhuma serve. Falta o teu corpo, a tua pele, o
mandares-me calar porque ressono a toda a bolina. O acordar e chegar-me a ti
para a melhor parte do sono.
E risco no calendário todas as provas da tua ausência mas,
ainda assim, os dias somam-se e eu contabilizo. E encolho-me. Aquieto-me.
Fundo-me com a poeira ao canto dos móveis e almejo ficar aí onde ninguém me vê
nem eu tenho percepção do mundo.