Não tenho o livro da minha vida, o autor da
minha vida, o filme ou realizador da minha vida. Tenho uma pequena lista de
simpatias e afinidades. Não existiu obra ou artista que tivessem remexido e
alterado as minhas entranhas mas existiram companheiros de viagem que deixaram
em mim a marca indelével de uma sensação. Lembro-me da experiência de leitura
de determinada obra pela sensação que me deixou mais do que pela epifania de um
paragrafo.
“Germinal” de Zola, “O Amante” de Margueritte
Duras, “O Estrangeiro” de Camus, “Ilhas na Corrente” de Hemmingway, “O Leitor”
de Bernhard Schlink, “Desgraça” de J. M. Coetzee, “O Livro das Ilusões” de Paul
Auster, “Viúva por um ano” de John Irving, “Cartas a Sandra” de Vergílio
Ferreira são algumas das afinidades que deixaram depósito em mim. Que deixaram
a memória de uma sensação e que, tal como a memória olfactiva, vão resgatando
momentos da minha vida: os que são motivo de regozijo e aqueles que não
preferindo esquecer trazem nas entrelinhas o saber acre da dor.
Hoje, numa daquelas feiras de edições e/ou
editoras mortas num centro comercial da baixa, comprei por cinco euros o livro “Teresa
e Isabel” de Violette Leduc e ao ler os primeiros capítulos enquanto
esperávamos pela hora do lanche como pretexto para escapar ao calor da rua,
senti que, muito possivelmente, estaria perante outra feliz afinidade.
Escrito em 1948 e proposto para edição em
1954 “Teresa e Isabel” foi sucessivamente censurado pelas editoras em nome de
uma moral castradora que achava escandalosa a liberdade com que a autora
escrevia sobre o amor e a sexualidade entre mulheres. E considerando a época é
efectivamente surpreendente a ousadia e, sobretudo, a coragem de escrever de
forma tão despida sobre o amor e a forma como se expressa. Claro que aos
censores escapou toda a doçura e poesia das palavras. Parágrafos inteiros de
beleza que demoraram mais de dez anos a chegar a quem pode, por fim,
compreende-la.
“Ela agarrou no meu livro, na minha lanterna,
deitou-me quase nas suas pernas. Depois levantou-me guardando-me nos seus
braços. Ela tinha tido um lançar de movimentos ousados comparados ao lançar de
um arco-iris intrépido. Os seus lábios abriram os meus sem os forçar, entraram,
demoraram-se como aventureiros tímidos sobre os meus dentes que eu fechava.
Durante esse instante de imobilidade, que nos era pessoal, a terra parou de
girar, os homens cessaram de nascer, de viver, de morrer. O tempo, o espaço, os
objectos, a consciência de nós mesmos tinham sido abolidos. Nós não existíamos
a não ser nos nossos lábios unidos. Existíamos neles como sonâmbulas que não
dormem. Os seus lábios moveram-se, escorregaram sobre os meus dentes,
misturaram a minha saliva com a dela, voltaram a vir, voltaram a partir,
retomaram no começo de novo beijo. Eles regressavam outra vez, puxavam ainda a
sua carne, a sua saliva, a minha. Da sua lentidão, nascia o quadro vivo da
lentidão e da doçura. Na minha boca, uma barcaça, e outra, e outra passavam. Os
seus lábios e os meus dentes eram rio, barcaça, cavalos de sirgagem, que
avançavam. À medida que as idas e vindas se renovavam, se prolongavam, eu
descia, nó após nó, numa noite nova. Sob esse vaivém de beijos, sob lábios que
se serviam do que lhes resistia eu era um sol que aquecia a noite.”