Conchita e os arianos

11 de maio de 2014

















Nem por isso estive interessada no Festival da Eurovisão mas como lá fui parar depois de muito zapping acabei por ficar a ver as atuações finais. Não fiquei muito surpreendida quando ganhou a Conchita mas confesso que – gostos musicais e opções artísticas à parte – fiquei satisfeita com o resultado; sobretudo porque, se servir de amostra, representa uma Europa tolerante e inclusiva. Com Portugal incluído.

Claro que depois estraguei tudo e fui ler os comentários às notícias que, entretanto, foram aparecendo no facebook. É óbvio que sabia ao que ia mas, ainda assim, foi pior do que esperava. Não pelos comentários parvos a tentarem ser engraçadinhos nem pelos declamadores da Bíblia nem pelos defensores de um mundo a preto e branco eternamente a chafurdar na lama da tradição e dos bons costumes mas pelo preconceito dentro da comunidade LGBT. E é sempre esse, mais do que qualquer outro, aquele que mais me choca.

Comentava por lá certa cidadã que a personagem Conchita não dignificava a comunidade e que era, na verdade, promotora de mais antagonismo. Que não nos representava, que nem sequer representava a comunidade Trans (que nem por isso representa porque é Drag) , porque não definia perante o mundo – de uma forma que ele entendesse – aquilo que é: o género com que se identifica, a etiqueta com que se cataloga, o gueto para onde se empurra. Que, no fundo, interpretando livremente as suas palavras, era, para nós, publicidade negativa.

E isto faz-me imensa confusão. O preconceito entre os que são alvo de preconceito é uma ideia que nega à partida toda e qualquer formulação de um pensamento lógico e racional. Pelo menos, para mim e sobretudo quando acho que a personagem Conchita extrapola a questão da identidade sexual e de género e assenta, sobretudo, no direito a ser. Na liberdade de ser.

A Conchita permite muitas leituras e fá-lo intencionalmente. É uma construção inteligente e absurdamente simples mas que, ainda assim, parece não se entender. É uma caricatura mas está tudo lá, mesmo na escolha do nome. É a interpretação de um mundo em que as fronteiras se desvanecem e os horizontes se alargam; onde o que é branco já não é apenas branco – é isso e outra coisa qualquer. A Conchita é a Conchita é a Conchita... ou não. É aquilo que lhe der na real gana. E ninguém tem nada a ver com isso.

Dizer que a Conchita não tem lugar na comunidade é negar a própria comunidade. A Conchita é uma declaração de princípios e não se ser capaz de reconhecer a posição que toma e a mensagem que transmite é ignorar, pura e simplesmente, toda a história da luta pelos direitos Humanos e LGBT e não ser consciente do tanto que custou e ainda custa a quem por eles dá a cara e a vida.

Se reclamamos respeito e igualdade com que legitimidade nos outorgamos o direito de apontar o dedo e dizer “tu és menos do que eu”. És menos gay do que eu, és menos trans do que eu, és menos lésbica do que eu. Menos butch, menos femme, menos macho. És menos puro.


Podemos gostar ou não da interpretação da Conchita, podemos gostar ou não da imagem que decidiu apresentar mas temos que lhe permitir expressar-se. E temos que a apoiar nas suas escolhas, proteger-lhe a retaguarda, dar-lhe um espaço onde ela possa existir abertamente sem ser julgada na sua essência. Para mim a comunidade é isto. Existe para isto. Para nos mantermos de pé como iguais e para nos erguermos exuberantes nos ombros das nossas diferenças. A comunidade é cor e ritmo mas é, sobretudo, aceitação e respeito. Se perdemos isso então perdemos tudo.

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3 Responses to “Conchita e os arianos”

  1. Carla, parabéns pelo belíssimo texto com que nos presenteias a todos. Sim a discriminação é tanta e de tantas e variadíssimas ordens que até arrepia. Disseste tudo na doze certa. De nada adianta querermos uma aceitação que não estamos dispostos a dar aos outros. E falo de TODOS os outros. O preconceito é isso mesmo: profundo medo e desconhecimento do outro. Dá vontade de dizer: pede aceitação aos outros, apenas e só quando estiveres disposto a dar essa mesma aceitação. Bj

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    1. Obrigada. :)
      Trata os outros como queres ser tratado e o mundo seria um lugar um bocadinho melhor.

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  2. Vim ler que é a famosa Conchita e heis que saio deveras esclarecida! Excelente post e tristes aqueles que se metem na vida dos outros em vez de olharem para as suas vidas miseráveis recheadas de ditaduras interiores.

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